Entro na sala de aula alguns minutos atrasado, culpa minha por ter parado na lanchonete para comprar um pão de queijo entre uma aula e outra. O professor já escreve no quadro um nome ao lado de um gráfico de linha: Mihaly Csikszentmihalyi. O sobrenome à primeira vista parece um embaralhado de letras, mas nunca me esqueci dele. A aula de Game Design do dia seria sobre este psicólogo e sua teoria de “Flow”, e como ela se aplica aos jogos. A principal lição seria a necessidade dos jogos de promover uma experiência que equilibra o desafio que o jogo oferece com a habilidade de jogadores, evitando assim a frustração, no caso de um jogo muito difícil, ou o tédio de uma atividade não desafiadora.
Essa é uma das cenas mais vívidas que tenho na cabeça quando tento lembrar de quando cursava Design de Games, ainda em 2007, quando mal havia uma indústria de jogos no país. Antes de pensar em estudar jornalismo, fiz a graduação em games quase completa, transferindo o curso somente no último ano. Na época, ainda estava descobrindo qual seria o meu papel no mundo de desenvolvimento de jogos, ficando entre a função de game designer—a pessoa que pensa a jogabilidade, os desafios, missões, e o que faz um jogo ser divertido—ou se ia trabalhar na parte da arte, com a criação de personagens, cenários, animações, e afins.
A Carreira em Design de Games
Acabei seguindo um pouco das duas coisas, mas trabalhei mais no meu desenvolvimento na parte de arte porque não achava que era bom em desenho e queria melhorar. Nessa época, ainda no segundo semestre da faculdade, consegui meu primeiro estágio na área de arte em um pequeno estúdio de games. Na época os estúdios no Brasil focavam a produção em jogos para celular. Isso era antes dos smartphones, e os celulares que rodavam os melhores jogos eram modelos flip da Sony-Ericsson ou Motorola.
O primeiro projeto em que trabalhei foi um jogo de RPG chamado Catarina, baseado em na lenda do Bumba meu boi. Contribuí com alguns cenários no estilo pixel-art, montados em tiles. Ainda não me esqueço da sensação de mover um personagem em um jogo e fazer ele interagir com algo que eu mesmo tinha criado. Foi a primeira vez que algo que fiz ganhou vida.
Além dos jogos para celular, outra coisa comum na época eram os jogos em Flash. O modelo tinha virado febre nos navegadores de Internet, deixando pessoas jogarem jogos simples diretamente de uma página de um site. Os jogos criados no Flash tinham, em geral, toda a arte do jogo criada dentro do próprio programa, que permitia desenhos vetoriais. Isso acabou dando uma estética própria aos jogos da Internet naquele momento. Assim, quando comecei a trabalhar em um serious game de treinamento para uma empresa, aprendi a criar cenários e desenhar diretamente no Flash.
Em outros trabalhos continuei focando na parte de arte, principalmente modelagem 3D. Trabalhei até em maquetes digitais para arquitetura, criando modelos de móveis e casas. Ao mesmo tempo, nos projetos da faculdade trabalhava mais com o game design, level design, e desenvolvendo as narrativas dos jogos.
Mudando de Carreira
Apesar de gostar de ver as coisas que eu criava ganharem vida, eu sentia falta de um senso de propósito e de impacto social no meu trabalho. Naquela época, não me passava pela cabeça o quanto jogos de fato ajudam pessoas a superar depressão, solidão, e uma série de outras situações difíceis (mesmo tendo visto como eles me ajudaram em muitos momentos da vida). Então, buscando trabalhar com algo que acreditava ter mais chances de “mudar o mundo”, mudei a graduação para jornalismo.
Mesmo com a mudança, sempre olhei para a criação de jogos com carinho, algo que ainda gostava de fazer mas que tinha ficado de lado. Trabalhando com comunicação em diversas agências, empresas e ONGs, experimentei com diferentes formatos para contar histórias (que é pauta para um outro post). Com o tempo, comecei a estudar mais sobre projetos que usam jogos como ferramentas de impacto social. Conheci iniciativas como a Games for Change e jogos como o Alpha Beat Cancer, e inclusive foquei minha pesquisa da pós-graduação em Mídia, Política e Sociedade nessa área. Mas foi recentemente, com uma nova era de jogos para navegadores, que as duas coisas voltaram a se conectar no meu trabalho.
Conectando os Pontos
Em 2023, trabalhando na Internet Society, me juntei a um time que promoveu a campanha OurNet, que fala sobre os riscos da fragmentação da Internet e mostra como esse processo já está acontecendo. Além dos textos e vídeos explicativos, queríamos passar a mensagem de uma forma que só os jogos conseguem: promovendo uma experiência.
Fiquei responsável por liderar o desenvolvimento desse jogo. Criei uma ideia de narrativa e de jogabilidade, e definimos que queríamos um jogo para navegador que fosse rápido e fácil de acessar e jogar para qualquer pessoa conectada à Internet. Para desenvolver o jogo contratamos a Ludact, uma empresa brasileira que tinha experiência no formato que buscávamos.
Disso saiu o InterNot, jogo que foi parte da campanha de 2023 e que continua no ar. Uma experiência de cerca de 10 minutos do começo ao fim, ele coloca o jogador no papel de uma viajante que tenta executar tarefas simples na Internet enquanto visita diferentes países, e em cada um deles encontra uma barreira diferente.
Experiências Comunicam
Em mais de uma ocasião me perguntei se tinha feito a escolha certa. Depois de muitos anos de debates internos, percebi o que as duas carreiras têm em comum: a comunicação. O produto final de um trabalho jornalístico tem como objetivo informar, comunicar algo de relevância pública a um grupo de pessoas. Os jogos visam entreter, mas esse entretenimento também comunica.
Jogos, além de serem uma forma de arte, são uma ferramenta poderosa justamente por poder passar experiências. São um sistema de regras estabelecidas que podem simular tomadas de decisão ou consequências sem os riscos reais, e muitas vezes (mas não necessariamente) de uma maneira divertida. Hoje, esse conhecimento me dá liberdade para criar em mais um meio, e estou ansioso pelo próximo jogo.