Foto em preto e branco de um músico segurando um violão cercado por borrões de pessoas. Seu rosto está coberto por um chapéu, e o fundo é preto e imerso em sombras.

Todas as manhãs acordo, passo o café, dou comida para os gatos e me sento para escrever. Escrevo em algum dos cadernos que comprei ao longo dos anos e que sempre achei que deveria guardar para algum momento especial, destes que nunca chegam e perigam fazer mofar as folhas que um dia quis preencher somente com grandes ideias. Não me levanto até ter escrito pelo menos duas páginas de qualquer coisa. Não tenho estrutura, não tenho tema, não tenho obrigação de fazer nada com aquilo. É um combinado comigo mesmo de colocar coisas no papel, mesmo que sejam pensamentos aleatórios que não façam mais sentido assim que a tinta seque na página. Às vezes, no entanto, aparecem ideias loucas que resolvo desenvolver nesse exercício. Em uma dessas ocasiões comecei a rascunhar uma história sobre um artista de rua chamado Malaquias.

Primeiro rascunho da história de Malaquias, escrito em Maio de 2024

Depois que fechei o caderno para tomar o café da manhã, a história ficou ali, parada por algumas semanas. Esqueci que ela existia até que comecei a me aventurar no mundo dos jogos de Twine e entrei em game jams, pequenos eventos online onde se criam histórias interativas dentro de algumas regras estabelecidas e um prazo curto. Escolhi uma jam que permitia oferecer uma única escolha na história, mesmo liberando outros elementos interativos. Foi quando abri meu caderno, revivi Malaquias, adaptei a história e fiz um final alternativo. Acrescentei mecânicas, uma trilha sonora simples e lá estava, a primeira versão de Malaquias e a Busca Por Atenção (que acabou se chamando Malachi And The Quest For Attention, já que a game jam era em inglês).

Na sua primeira encarnação, a história foi jogada por algumas pessoas e continua lá no meu Itch.io para quem quiser conhecê-la. Não pensei que fosse fazer mais nada com Malaquias ou com a sua aventura, mas ainda tinha vontade de ilustrá-la melhor. As histórias interativas ficam muito mais interessantes com elementos visuais, e nesse caso eu não tinha nada que ajudasse a mostrar o mundo de Malaquias para os jogadores.

Nesse meio tempo comecei a Mil Palavras, a newsletter onde todo mês escolho uma fotografia e escrevo uma história a partir dela. O conto de Malaquias não se encaixava lá—afinal, não tinha vindo de uma fotografia. Mas nesse mesmo período estava terminando um curso de fotografia e precisava pensar em algo para o trabalho final. Decidi então que inverteria a lógica da newsletter: reescreveria a história de Malaquias e faria uma série de fotos a partir dela.

As Fotografias

Com o texto pronto e a orientação da fotógrafa Lilian Barbon (vale muito a pena conhecer o trabalho dela), fui para o estúdio. O tempo era curto e queria conseguir produzir toda a série em um único dia fotografando. Contei com o apoio de colegas do curso que modelaram tanto como Malaquias, quanto como os vultos que passam ao seu redor, ignorando o artista na multidão.

Fiz as fotos separadamente, mas mantendo sempre a mesma posição da luz e da câmera para poder sobrepô-las depois. As fotos de Malaquias foram feitas com flash das tochas do estúdio para dar detalhes ao personagem, enquanto os vultos foram capturados com a câmera em longa exposição e a luz contínua da mesma tocha.

As fotos do estúdio passaram a ideia e a ambientação que eu queria para a história, mas ainda achei que faltava uma foto na série: o brinde de Malaquias com Aparecida, o “ponto de virada” do conto. Não tinha mais tempo para agendar mais um dia no estúdio, então improvisei: peguei uma mesa e duas cadeiras de metal velhas e enferrujadas emprestadas, montei o cenário em um quarto de casa, vesti as mesmas roupas de Malaquias e pedi à Mari, minha esposa, que fosse Aparecida. A iluminação teve que ser diferente, então usei um flash em uma softbox presa a um tripé no canto do quarto. Depois, juntei com fotos que tinha de cenários externos na edição.

Uma Edição Especial da Mil Palavras

Com tudo pronto, montei a edição da Mil Palavras com o novo texto e a série de fotos. Acabei escolhendo somente cinco das seis imagens, deixando o texto também ocupar o espaço que merece. Você pode ler a edição completa aqui.

Gostei da experiência de criar fotografias em cima de um texto, certamente esse não será o último experimento que faço. Em tempos de inteligência artificial, quando pessoas pensam no prompt perfeito para criar visualmente algo que nasceu de suas cabeças, fico feliz de ter juntado pessoas e executado uma ideia para ilustrar uma história que nasceu em uma manhã qualquer escrevendo no meu caderno. Foi um processo artístico extremamente colaborativo, e é dele que me lembro quando vejo as fotos hoje.

Veja a edição da Mil Palavras com o conto e as fotografias.

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